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O lado invisível do futebol

Foto: Reprodução

A diferença do futebol feminino para o masculino é demonstrada desde o cerne de seu desenvolvimento. Em 1930, no Uruguai, estreava a primeira Copa do Mundo masculina. Meses depois, o futebol feminino surge como atração circense no Rio de Janeiro. O “Grande Circo Irmãos Queirolo” apresentou a principal exibição da noite 25 de novembro de 1930: dez mulheres que formaram dois times, um representando o Brasil e o outro o Uruguai. Assim, as moças do “bello sexo”, como retratavam os jornais da época, jogaram uma partida de futebol publicamente pela primeira vez no Brasil. Não como um esporte, vale ressaltar, mas como um espetáculo circense.

No decorrer dos anos, as mulheres brasileiras passaram a conquistar um espaço mais digno no esporte, porém a negação desse espaço, oficializada através do Decreto-Lei 3199 em 1941, durante a Era Vargas, acabou vindo à tona. Nele determinou-se que as mulheres estavam proibidas de praticar qualquer esporte “que fosse contra sua natureza”. O futebol já era visto como um esporte especificamente masculino, pois ao gênero feminino sempre fora imposta a conotação de “sexo frágil”.

O Decreto-Lei 3199, de 1941, proibiu mulheres de praticar qualquer esporte “que fosse contra sua natureza”

No entanto, desde a década de 1940 as mulheres jogavam futebol de forma clandestina, algumas até foram presas durante a ditadura, visto que o país vivia sob o regime militar, nesse período, em  1965, o decreto de proibição foi publicado novamente. Essa lei foi revogada em 1979, e somente em 1983 a modalidade foi regulamentada. Mas as condições deste regulamento reforçavam a ideia do “sexo frágil”, pois determinava-se que uma partida deveria durar 70 minutos e não 90 minutos, como é no futebol masculino. Além disso, a trave tinha que ser menor e a bola mais leve.

Em 1983, o futebol feminino foi regulamentado: o tempo era menor, a trave mais estreita e a bola mais leve.

Veja fotos antigas do futebol feminino

Gabriela Chaves, professora do Instituto de Educação Física e Esportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que esse contexto histórico-social, fruto de uma sociedade machista patriarcal, tornou o futebol feminino quase invisível. “Incumbiram as mulheres como sexo frágil, inaptas a determinadas funções, que eles atestam serem masculinas”, disse Chaves. A preparadora física também afirma que as consequências desses fatos históricos ainda estão presentes na nossa sociedade. “Só na última Copa do Mundo as mulheres tiveram os uniformes feitos realmente para elas, então são inúmeros contextos que esconderam o futebol feminino tanto do grande público como até de patrocinadores”.

Inúmeros contextos esconderam o futebol feminino tanto do grande público, como até de patrocinadores.

(Gabriella Chaves, professora e preparadora física)

Gabriela também é ex-atleta de futsal (futebol de salão) e, apesar do seu amor pelo esporte, preferiu desviar seu caminho para a docência, pois desde o princípio se interessou pela preparação física. “O futebol sempre foi algo que me fascinou, eu fui por muito tempo atleta de futsal, mas passei pelo futebol de campo também”, recorda. Ela iniciou sua carreira como preparadora física do futsal masculino, e mesmo com o apoio da comissão técnica, se sentia incomodada com relatos de alguns atletas a seu respeito. “Sempre havia desconfiança sobre meu trabalho, sobre minha capacidade intelectual, níveis de conhecimento”, conta a preparadora física. “Existia uma disputa intelectual por eu ser uma mulher, como se eles soubessem mais do que eu só por serem homens”, completa.

Além das desconfianças que as profissionais mulheres enfrentam no âmbito esportivo, esse espaço continua sendo ocupado majoritariamente por homens, até mesmo na modalidade feminina. O Censo do Futebol Feminino, realizado pelo Globo Esporte, revela que apenas 30% dos integrantes das comissões técnicas são mulheres. O levantamento foi feito com todos os clubes das Séries A1 e A2 do Campeonato Brasileiro. 

O Relatório de Futebol Feminino nos Países Associados, divulgado em 2019, indica o descaso da modalidade no Brasil. O estudo realizado pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) aponta que no país apenas 15 mil mulheres estão jogando futebol de forma organizada, em torneios profissionais ou amadores. Nos Estados Unidos, tetracampeões mundiais, são 9,5 milhões de jogadoras, 600 vezes mais que no Brasil. A situação é ainda mais precarizada na base, sendo apenas 475 brasileiras federadas. 

Foto: Pedro_Chaves/FCF.jpeg
Foto: Pedro Chaves / FCF

Tháfila Alves, jogadora profissional do Fortaleza, é uma das 15 mil atletas do país. O futebol sempre esteve presente em sua vida. Com um sorriso no rosto, ela lembra que mesmo bebê já preferia a bola de futebol. “Desde criança eu já gostava de uma bola”, relata Alves. “A minha mãe me presenteava com bonecas e maquiagens, mas eu sempre gostei mesmo de uma bola”, acrescenta. Ela também conta que, no decorrer de seu crescimento, percebeu que já visava à carreira no esporte.

Assim como inúmeras atletas do futebol feminino, Tháfila enfrentou diversos  problemas para se profissionalizar no esporte. “Muitas vezes tirei dinheiro do meu próprio bolso para ajudar a pagar campeonato, pagar passagens. Foi bem difícil, também está um pouco difícil agora, mas como antes não, melhorou bastante”, disse.

Muitas vezes tirei dinheiro do meu próprio bolso para ajudar a pagar campeonato, pagar passagens. Foi bem difícil.

(Tháfila Alves, jogadora)

A atleta acredita que a última  Copa do Mundo resultou numa melhoria para se estabilizar no futebol. Pela primeira vez os jogos foram transmitidos em rede nacional, promovendo maior visibilidade para a modalidade, ainda que a igualdade em relação ao masculino seja uma realidade distante. “O futebol masculino é totalmente diferente do feminino, a valorização, os estádios lotados, coisa que a gente ainda não têm”, afirma Tháfila. “Estamos lutando pra isso acontecer. Creio que, com a maior visibilidade agora, os torcedores, os amantes do futebol vão abraçar o feminino, assim como abraçam o masculino”, complementa.

Futebol Feminino Cearense


Atualmente,  o Campeonato Cearense de futebol Feminino conta com a participação de cinco times: Fortaleza, Menina Olímpica, Tianguá, São Gonçalo e Ceará, atual campeão estadual. Com pouca divulgação, não há lotação em estádios, nem grandes eventos.

Millena Almeida, torcedora do Ceará, relata que não acompanha tanto como gostaria o time feminino. “O futebol feminino tem um horário péssimo”, diz a torcedora. “Eu não sei se é de propósito, mas a federação cearense não dá importância de colocar horários bons para os jogos, algumas partidas são, por exemplo, às 15h, em dias da semana”, finaliza. Millena faz parte do grupo Torcedoras Raiz do Ceará, que tem como objetivo principal conseguir cada vez mais espaço para as mulheres, tanto no campo como na arquibancada.  

O Futebol Feminino tem um horário péssimo. E, eu não sei se é de propósito.

  (Millena Almeida, torcedora)

O presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Ceará (SAFECE), Marcos Gaúcho, afirma que há tempos vem tomando medidas que auxiliam atletas ganharem visibilidade. “Antes do futebol feminino virar moda no estado do Ceará, o sindicato já apoiava a modalidade com uniformes, bolas de futebol. E hoje, nós somos um dos patrocinadores do Menina Olímpica, um projeto social feminino que já revelou atletas até mesmo para a seleção brasileira”, conta.  

Confira a declaração completa do presidente do SAFECE:

Além do sindicato, outros incentivos aconteceram para o esporte. Em 2016, a FIFA, em conjunto com a Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL), exigiu que os clubes criassem também uma equipe feminina ou se associassem a outro clube que possua. Somente assim as equipes masculinas poderão participar de campeonatos internacionais como a Libertadores da América e o Mundial. A resolução entrou em vigor em janeiro de 2019 e tem alavancado o esporte para as mulheres.

Desemprego

Histórias como a da jogadora Tháfila e da preparadora física Gabriela inspiram mulheres que sonham em seguir carreira profissional no futebol. Essa área torna-se mais complicada pelo pouco investimento na modalidade, uma vez que a situação ainda é de descaso e precariedade. No país do futebol, as mulheres não são devidamente reconhecidas, mesmo sendo representadas pela maior atleta de todos os tempos, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo, Marta.

Além das dificuldades que o futebol feminino traz para aquelas que sonham em seguir carreira, as mulheres ainda têm que lidar com a taxa de desemprego no país que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi de 13,1% no quarto trimestre deste ano, superior à taxa dos homens com 9,2%.

 

A solução para uma realidade mais igualitária no meio esportivo se dá a partir de investimentos e incentivos desde cedo. “Isso tudo pode ser mudado com a educação, ensinando as crianças sobre a igualdade de gênero, para que não vejam mulheres como inferiores. Em longo prazo, isso ajudará as futuras atletas e a sociedade”, afirma Gabriela Chaves.

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